terça-feira, 29 de novembro de 2022

O Adeus dos vargem-grandenses à Irmã Camilla Bizzotto (Por Ana Socorro Ramos Braga)

Irmã Camilla Bizzotto realizando atendimento ambulatorial.
O texto que apresento em seguida é de autoria coletiva. Foi elaborado por muitas mãos, inclusive as de Dr. Ana Maria Nascimento. Mas também as de José de Fátima (1953-2019), jornalista, editor da publicação local A Folha do Iguará, a quem consultei à época sobre a autoria recebendo dele resposta negativa. Por isso, acredito que, dentre outras e por causa do estilo, tenha a colaboração das irmãs de congregação, especialmente Ir. Donata Azzini, única das missionarias pioneiras ainda entre nós. Eu fiz algumas alterações no texto visando a sua atualização, bem como organizei as datas e a grafia correta dos lugares e pesquisei sobre os dados relacionados a Irmã Camilla, buscando concretizar uma primeira biografia. Nesta caminhada, tive a ajuda de Ir. Luciana Tognon, que me enviou algumas informações por e-mail, traduzidas do italiano, bem como de Nini Barros, Nazaré Abreu e todas as pessoas a quem entrevistei para pesquisa para escrita comemorativa do cinquentenário da Missão de São João Antônio Farina no Brasil.

Penso que sua primeira versão é bem anterior àquela que foi escrita por ocasião da inauguração do Centro de Referência da Criança de Vargem Grande, em 2001, por Drª Ana Maria Nascimento, então Prefeita Municipal. O prédio e a filosofia de atendimento e cuidado com a infância, bem como a atenção pré-natal, estão baseados nos ensinamentos de Irmã Camilla, que foi pioneira neste atendimento em Vargem Grande, muito antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Daí a escolha de seu nome por Drª Ana, de quem tornou-se grande amiga e confidente. Irmã Camilla também dá nome ao auditório do Ambulatório Santa Maria Bertilla, mais conhecido como ambulatório das Irmãs, bem como a muitas Camillas e Bertillas nascidas no município, isso porque o trabalho da Congregação das Filhas de São João Antônio Farina é forte referência de saúde, educação e evangelização no município de Vargem Grande e região.

Desta maneira, com um texto aberto e de muitas vozes e mãos, penso que cada um pode também se reconhecer nesta homenagem à inesquecível Irmã Camilla, conversando sobre o que vivenciou e proclamando seu trabalho e sua fé para que sejam vividas e multiplicadas pelas novas gerações.

Outras informações podem ser obtidas no livro A Missão de São João Antônio Farina no Brasil (2019), de minha autoria, disponível na secretaria da Paróquia de São Sebastião ou diretamente no Instituto Farina do Brasil.

UNA ITALIANA-BRASILEIRA OU UNA VARGEM-GRANDENSE NASCIDA EM CITTADELLA?

No ano de 1931, precisamente, em 9 de novembro, a casa de Celeste Bizzotto e Pia Parolin - localizada na Via Ca’. Moro, Padova, na comuna de Cittadella, na região do Vêneto - transbordava de alegria pelo nascimento da pequena Augusta, uma menina de pele branca e de olhos azuis, muito querida e amada por todos. Na República Democrática Italiana, a comuna é a unidade básica de organização territorial, equivalente ao município no Brasil.

A família de Augusta era de pessoas humildes, pobres, mas ricas de esperança de um futuro promissor para seus oito filhos, quatro meninos e quatro meninas.

Quando completou a idade escolar, o senhor Celeste Bizzotto e sua senhora Pia matricularam a pequena Augusta na escola primária para que aprendesse as primeiras sílabas, os elementos essenciais da leitura e da escrita. Ainda pré-adolescente, Augusta percebe a necessidade de ajudar os seus pais e aos 10 anos começou a trabalhar como aprendiz tecelã em Postioma, povoado pertinho de Cittadella, onde permaneceu até os 17 anos de idade. 

Aos 24 anos, exatamente no dia 16 de abril de 1955, respondendo ao chamado de Deus na sua vida, Augusta fez o pedido para entrar no postulantado das Irmãs Mestras de Santa Doroteia Filhas dos Sagrados Corações, em Vicenza. Em sua formação religiosa, trabalhou no hospital psiquiátrico da comuna de Marostica, e depois no Hospital de Vicenza como enfermeira geral, que equivale aqui no Brasil a técnico de enfermagem.

No dia 24 de outubro de 1957, fez a primeira profissão religiosa e recebeu o nome de irmã Camilla. Logo depois foi enviada ao Hospital Civil Santa Maria dei Battuti, em Treviso, para iniciar o curso de enfermeira profissional. Naquele hospital, tinha trabalhado a Santa Maria Bertilla, sua co-irmã na Congregação das Mestras de Santa Doroteia, Filhas dos Sagrados Corações. Isto teria sido uma coincidência ou uma nova oportunidade para Ir. Camilla concretizar seu sonho de dedicar sua vida a serviço dos sofredores. Graças a sua grande habilidade em lidar com os doentes e a sua capacidade intelectual e de enfermagem, é nominada a participar de um curso de formação profissional para obter a habilitação como enfermeira-chefe.

O ano de 1961 foi um ano especial para irmã Camilla. Especial porque deixou o seu serviço no hospital e retornou à Casa Madre da Congregação, em Vicenza, para se preparar com discernimento sobre o significado definitivo de sua vida: a profissão perpétua. O seu “Sim” para seguir Jesus para sempre!
Inauguração do CEAC, em 2001.
Após a celebração do “Sim” perpétuo, irmã Camilla retornou ao Hospital Civil Santa Maria dei Battuti de Treviso e foi destinada a prestar serviço como enfermeira no departamento de geriatria, onde permaneceu por dez anos consecutivos. 

Em 1970, o Senhor lhe fez uma segunda chamada: “a vocação missionária!”. Chamou-a para uma missão Ad Gentes – decreto conciliar que trata da atividade missionária da igreja católica, reconhecendo e reafirmando que a Igreja de Jesus Cristo tem uma natureza missionária, assim como o próprio Jesus assim convocou: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda criatura!” (Mc 16,15). 

Irmã Camilla partiu de sua terra com a prontidão que sempre a caracterizou quando alguém precisava da sua ajuda. Ao embarcar para o Brasil, ela deixando para trás a sua família e os amigos, mas ficou feliz porque estava consciente do valor da nova missão que Deus lhe reservara em solo brasileiro. Depois de longa viagem, ela chegou ao seu destino, a cidade de Vargem Grande, no estado do Maranhão no dia 8 de julho de 1971.

Inicialmente a missão de Ir. Camilla foi difícil, pois deveria substituir irmã Alfonsina Piacente, uma das pioneiras da missão das Filhas de São João Antônio Farina no Brasil, muito querida e amada pelo trabalho realizado desde 1967. Foi um grande desafio para esta jovem irmã, mas ela em nenhum momento mostrou preocupação ou medo. Estava consciente das suas capacidades e habilidades, e todos sabiam o quanto era tenaz no seu trabalho.

Antes de tudo, procurou conhecer o povo para poder iniciar literalmente o seu serviço de doação e de caridade, colocando em prática tudo o que ela tinha aprendido nos vários anos de estudos e de prática profissional. Aos seus lindos olhos azuis não escapava nada, e muito menos a grande carência de afeto desses irmãos necessitados não só de saúde, mas inclusive de amor, de compaixão, de compreensão e de proximidade. Ela era uma irmã de língua diferente, um olhar distante, mas sempre atenta aos problemas que a rodeavam. 

Em Vargem Grande, Ir. Camilla teve a oportunidade de encontrar e orientar médicos recentemente formados, tais como Euzébio Napoleão Mendonça, Miguel Rodrigues Fernandes, Artur Messias Filho e Kerly Magalhães Selares, dentre muitos outros. Ela os incentivou e com ele fez parceria que trouxe enormes benefícios de saúde, ampliando o atendimento tanto na sede quanto na zona rural. 

Quem ajudava no trabalho de irmã Camilla era as enfermeiras que vinham sendo preparadas no próprio ambulatório: Maria das Dores Silva Rodrigues, Isaura Gonçalves Barbosa, Maria de Lourdes Ribeiro da Costa, Maria das Graças Almeida Monteiro, Lucia Silva de Aguiar, Rosa Viana, Maria das Graças Silva Rodrigues e Maria do Socorro Botelho, são alguns nomes dentre muitas que se formaram pelas mãos conscientes e disciplinadas das irmãs. As duas últimas mencionadas, inclusive, observavam com grande interesse todos os ensinamentos e atitudes de Ir. Camilla, ao ponto de despertar nelas a vocação religiosa, ingressando para a Congregação das Irmãs Mestras de Santa Doroteia Filhas dos Sagrados Corações. 

Além das mencionadas, Ir. Camilla teve como auxiliar de enfermagem, Luiza Vânia Barbosa, que depois de ter trabalhado com ela durante vários anos, passou para outra função de apoio: providenciar e distribuir gratuitamente os medicamentos para as pessoas carentes que Ir. Camilla consultava nas desobrigas e/ou a domicílio, ou no Ambulatório Santa Maria Bertilla. 
Isaura Gonçalves Barbosa no Ambulatório Santa Maria Bertilla.
Muitos de nós vargem-grandenses não sabemos o que esta irmã sofreu devido à falta de recursos financeiros, por não conseguir aliviar um pouco o sofrimento ou tratar as doenças dos pacientes que a procuravam. O Ambulatório Santa Maria Bertilla foi construído e equipado com camas, inicialmente reservadas para emergências de mulheres grávidas, mas atendiam quaisquer outras necessidades de urgência. Mas como tudo era urgente, essas camas estavam sempre ocupadas. No entanto, se chegava um paciente que precisava de socorro, ela sempre encontrava um modo de oferecer-lhe o atendimento necessário.

Quantas vidas salvas, e quantas novas vidas recém-nascidas foram recebidos por aquelas mãos?! E ela, com sua grande experiência e determinação profissional, procurava de todos os modos restituir a alegria e a esperança de recuperação.

Quantas vezes a irmã Camilla ouviu o grito de desespero de pessoas que se apresentavam no Ambulatório (ou na casa das irmãs) em busca de ajuda?! Com calma e o equilíbrio diante das situações mais desesperadoras, ela, então, convencia os pacientes e seus familiares de que apesar da situação difícil era necessário ter fé em Deus e muita confiança na Virgem Maria, pois tudo se resolveria bem, segundo o plano de Deus Pai.  E isto se verificava em seguida com a melhoria e cura.

Irmã Camilla sempre se sentiu guiada e protegida pela presença do Espírito Santo. Sua força e seu grande espírito de fé irrompiam a mente e o espírito, substituindo o medo, a dúvida e a incerteza. De acordo com o jornalista José de Fátima, todos nós pensávamos que Ir. Camilla era só nossa, mas no dia 22 de março de 1987 ela foi enviada para mais um serviço missionário no estado do Pará, no município de Igarapé-Açu. Também ali atendeu os doentes, os pobres, às crianças, os idosos e sofredores. Nesta missão, ela permanecera até o dia 8 de dezembro de 1992, quando retorna para Vargem Grande, trazendo consigo grande alegria.

Em 1° de abril de 2003, Irmã Camilla voltou para sua terra natal, a Itália, reconhecendo que não terá mais saúde para continuar sua Missão e que estava sobrecarregando Irmã Luciana Tognon que assumia suas funções sempre que necessário. Para Irmã Luciana, Ir. Camilla, “Nunca deixava que alguém passasse sem se interessar pela sua saúde física, mas também revelava preocupação em relação à vida espiritual, e convidava a refletir, a pensar e a não esquecer que ele/ela é filho/filha de Deus”.

À época, sobre a data de seu retorno, o jornalista José de Fátima escreveu: No Brasil, todo mundo sabe que no dia 1° de abril é conhecido como o “dia da mentira”... Portanto, sentindo falar que a Irmã Camilla havia retornado para a Itália o 1° de Abril de 2003, nós não acreditamos, de fato, tínhamos a certeza, que sua partida era uma mentira, que era uma brincadeira tudo o que se ouvia do povo: Irmã Camilla nos deixou! Irmã Camilla nos deixou!

Em 2009, Irmã Camilla retornou a Vargem Grande para uma visita. Na ocasião, cercada de amor e gratidão, toda a cidade ficou feliz e José de Fátima escreveu: Obrigada, Irmã Camilla e obrigada ao Bom Deus que lhe concedeu um pouco de saúde para enfrentar esta longa viagem e de saudar ainda uma vez todos aqueles que receberam seu carinho, acolhida, compaixão, formação humana-cristã e religiosa, atenção e preocupação pela saúde do corpo e do espírito e sobretudo porque foram contaminados pelo teu compreensivo e materno sorriso!!!

Eu retomo essas palavras para dizer que hoje, mais uma vez, elas reverberam cheias de saudade em cada um de nós: Irmã Camilla nos deixou! 

E ainda nas palavras de José de Fátima, que faleceu prematuramente em 2019, agradecemos: Obrigado por tudo!  Obrigado Ir. Camilla! Adeus!  És no coração de todos nós habitantes de Vargem Grande!!!!! De um Vargengrandense que te considerou sempre como uma mãe, uma irmã e uma grande Amiga, mesmo se às vezes te fez sofrer com o comportamento...pouco católico!!! Mas eu sou um crente !!! Zé de Fatima Souza (Vargem Grande 1° de abril de 2009).

Faço minhas as palavras dele, que se mostrou tão humano e filho agradecido porque todos nós somos vulneráveis, frágeis e sedentos de amor, assim como Zé de Fátima se revelou. Amplio nossas vozes a de todos que desejarem homenagear nossa querida irmã Camilla Bizzotto, e assim revigorar sua fé nas promessas de Salvação de Nosso Senhor Jesus Cristo e viver o Evangelho na vida cotidiana. 

Que ela (e ele) Descanse em Paz.

Por Ana Socorro Ramos Braga (28 de novembro de 2022)
Profª Drª do Departamento de Artes Cênicas da UFMA

Legenda 1: Irmã Camilla Bizzotto realizando atendimento ambulatorial. A esq. Maria das Graças (Gracinha), assistente de enfermagem. Fonte: Acervo da Congregação. Livro A Missão das Filhas de São João Antônio Farina no Brasil (2019).

Legenda 2: Inauguração do Centro de Atendimento à Criança Irmã Camilla Bizzotto, dia 29 de março de 2001, Aniversário de 63 anos de criação do município. Fonte: (Arquivo da autora). Livro A Missão das Filhas de São João Antônio Farina no Brasil (2019).

Legenda 3: Isaura Gonçalves Barbosa em seu local de trabalho, o Ambulatório Santa Maria Bertilla, à frente do Auditório Ir. Camilla Bizzotto. Ano: 2017. Fonte: Arquivo da Autora.

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